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Caso Embaixador José Jobim: para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça

Caso Embaixador José Jobim: para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça

A advogada Lygia Jobim, sua filha: “Este é o primeiro caso de reconhecimento pelo Estado de sua responsabilidade na tortura e morte de um cidadão brasileiro, através da retificação da certidão de óbito”

Na tarde de 22 de março de 1979 o Embaixador aposentado José Jobim saiu de casa, no Rio de Janeiro, para visitar um amigo e desapareceu. Uma semana antes, na festa de celebração da posse do general Figueiredo, ele comentara, em uma roda, em Brasília, que pensava iniciar um livro com informações inéditas, de bastidores, sobre os polêmicos acordos que presenciara, da construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu. Dois dias depois o seu corpo foi encontrado pendurado numa árvore, no Itanhangá, início da Barra da Tijuca, na Zona Oeste do Rio, numa grosseira simulação de enforcamento semelhante àquela do jornalista Vladimir Herzog. Segundo relatos de testemunhas, registrados depois, no inquérito policial, o corpo do Embaixador apresentava sinais brutais de tortura.

O caso do embaixador Jobim foi o primeiro caso de sequestro no período do governo Figueiredo semelhante também ao assassinato disfarçado de Alexandre Von Baumgarten, que mantinha relações com militares e foi sequestrado, torturado e morto numa simulação de afogamento. Outros 58 casos sinistros do período fim do governo Geisel/começo de Figueiredo jamais foram investigados com seriedade e firmeza.

Na mesma época sombria onde alguns dos protagonistas da cena da ditadura civil-militar eram o general Newton Cruz, operador do SNI; o embaixador Manoel Pio Corrêa, notório fascista e secretário-geral do Itamaraty; o seu compadre, delegado Rui Dourado, tido como o ”braço policial” do diplomata (foi na sua jurisdição que o corpo de Jobim foi encontrado) e o ministro José Costa Cavalcanti, militar, político, primeiro diretor geral de Itaipu, célebre pela sua fala, em Estocolmo, na primeira reunião mundial sobre o meio-ambiente: ”Desenvolver primeiro e pagar os custos da poluição depois.”

Todos envolvidos no episódio.

Mas há pouco, no entanto, a trágica ocorrência na qual o diplomata foi eliminado adquiriu uma importância histórica relevante. Ela é sublinhada pela sua filha, a advogada Lygia Jobim, que depois de 39 anos de luta incessante e praticamente solitária, com o forte apoio dos seus dois jovens filhos, na semana passada conseguiu o reconhecimento oficial do que na verdade ocorreu, através da mudança do registro do óbito do pai.

”É o primeiro caso de reconhecimento pelo Estado, ” diz ela, ” de sua responsabilidade na tortura e morte de um cidadão brasileiro, através da sua certidão de óbito. ”No documento era informado que Jobim se suicidara. Na semana passada, ele foi o primeiro cidadão brasileiro, morto político, a conquistar o direito de retificar o atestado de óbito, graças ao trabalho da Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, a CEMDP.



Os escândalos de Itaipu, no entanto, já tinham começado a emergir, naquela época, com o livro de um empresário alemão radicado no Brasil, Kurt Rudolf Mirow, A Ditadura dos Carteis, editado por Enio Silveira, na sua Civilização Brasileira, e então marido de Lygia. Silveira, sua viúva lembra, foi perseguido, esteve preso várias vezes, seu crédito como empresário foi cortado e a Civilização Brasileira foi vítima de mais de um atentado.

O livro de Mirow está disponível, hoje, em vários sebos virtuais. Quando lançado, foi recebido com o silêncio absoluto da mídia e logo depois o autor se viu obrigado a fugir para a Alemanha para não ser preso.

A história de José Jobim, que foi embaixador do Brasil na Colômbia, no Paraguai, Vaticano, Argélia e Marrocos, é revisitada pela filha, Lygia Jobim, nesta entrevista concedida a Carta Maior. Outras mídias que divulgaram a decisão definitiva da CEMDP nos últimos dias: apenas os sites progressistas GGN e Nocaute, e a Rádio Guaíba e revista Época.

A conversa com Lygia Jobim.

Carta Maior Você acha que a conclusão e a divulgação, depois de 39 anos e às vésperas de uma eleição na qual estão envolvidos personagens da área militar, atuantes nos idos dos anos 60, 70 e 80, têm alguma relação com o pleito para presidente?

Lygia Jobim
– Acho que o momento em que se deu a retificação não foi propositalmente escolhido. Mas o fato de ter acontecido às vésperas desta eleição acaba sendo muito significativo. Espero que consiga mudar a cabeça de alguns que defendem a volta da ditadura e apóiam a prática da tortura.

CM – Quando, exatamente você e a família entraram com o pedido de retificação do óbito? Você, como advogada, atuou para esclarecer, denunciar, divulgar e fazer justiça à memória do embaixador Jobim?

LJ– O pedido de retificação do atestado de óbito foi feito por mim, em carta endereçada à Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, em junho de 2017. Há muito não temos uma equipe de advogados. Venho atuando sozinha, com o apoio incondicional de meus filhos e de alguns amigos. Acho importante frisar que este é o primeiro caso de reconhecimento pelo Estado de sua responsabilidade na tortura e morte de um cidadão brasileiro, através da retificação da certidão de óbito. Trata-se do reconhecimento de um passado negro e que, por falta de conhecimento da população, volta a nos assombrar. Peço aos familiares de quem teve parentes que foram vítimas fatais da violência de Estado que se dirijam à Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, a CEMDP, em busca desta reparação. Assim, estarão contribuindo não só para a história do país como para que nunca se esqueça e nunca mais aconteça.

CM – Você concorda com a feliz expressão do jornalista Luis Nassif, sobre a história do diplomata José Jobim quando diz que é um caso clássico a ilustrar a ”falta de limites do regime militar”? 

LJ –
Eles não só não tinham limites como não poupavam nenhum setor. A barbárie era generalizada e a perseguição sistemática. Não havia limites porque a ordem para torturar e matar partia do primeiro escalão do Executivo. Não adianta continuar a repetir a balela de que eram apenas alguns malucos que se valiam da tortura, quando tomamos conhecimento, através da entrevista do general francês Paul Aussarresses concedida à jornalista Leneide Duarte-Plon e publicada no livro de sua autoria, A tortura como arma de guerrada Argélia ao Brasil, que Figueiredo assistiu a sessões de tortura. Documentos da CIA, recentemente revelados, confirmam o que todos já sabiam: Geisel mandou exterminar e Figueiredo foi nosso Nero tupiniquim.

CMComo foi dada a notícia do”suicídio’ a você e familiares?

LJ
– A notícia do suicídio já circulava no final do dia do achado corpo. No dia seguinte pela manhã, na saída do São João Batista, o delegado Rui Dourado já dava entrevistas afirmando isso. Dias depois foi à casa de minha mãe e, diante da evidência de que não havia sinais de enforcamento na autópsia, me explicou: “Filhinha, você não entendeu. Seu pai botou a corda no pescoço e esperou cair morto em cima dela.” Nos anais da Comissão da Verdade narra-se parte da história.

CMVocê se lembra de comentários do seu pai, na intimidade, sobre as irregularidades ocorridas nas negociações de Itaipu?

LJ – Esses comentários eram frequentes, sobretudo quando se referia ao Costa Cavalcanti.

CMVocê e seu pai, Lygia, eram companheiros, muito amigos?

LJ– Sim, éramos muito amigos! Ele era uma pessoa doce, amiga, conselheiro.

CM – O embaixador tinha laços de amizade com Arraes a quem forneceu passaporte quando ele se asilou na Argélia? Ou eram apenas laços sociais?

LJ
– Não acho que se conhecessem pessoalmente. O episódio do passaporte se deu porque meu pai sempre foi um ponto fora da curva no Itamaraty. Quando estava no Vaticano recebeu ordens para não convidar Dom Hélder, de quem ele e minha mãe eram amigos há muitos anos, para visitar a Embaixada. Passou a cumprir à risca as instruções. Convidava-o para jantar fora, levava toda a família, e no dia seguinte mandava um ofício para o Itamaraty informando e dizendo inclusive o restaurante em que havíamos ido. Foi Dom Hélder quem celebrou meu casamento com Enio.

CM- Seu pai não se sentia em momento algum ameaçado por saber de segredos relacionados à corrupção de militares na obra de Itaipu?

LJ – Nos últimos dias de vida ele recebeu ameaças por telefone, mas não deu importância. Eu mesma, em novembro de 2014, no dia em que o Instituto João Goulart lançou o vídeo Itaipu, a quem interessa a escuridão**, que trata do caso de meu pai, fui ameaçada por telefone. Registrei a ocorrência, foi aberto um inquérito que, sem que fosse feita nenhuma diligência, foi arquivado por prescrição. A única coisa que consegui saber é que a ameaça partiu de um telefone de Curitiba.

CMQuais ações foram feitas por você e sua mãe?

LJ
– Por um longo período não nos foi possível fazer nada a não ser, minha mãe eu, averiguarmos pista que nos chegavam através de conversas. Somente em 2012, já tendo minha mãe falecido, pude tomar um novo passo oficial, endereçando um pedido à Comissão Nacional da Verdade para que aceitasse investigar o caso.

CM – Qual era o papel do Rui Dourado na época de Itaipu?

LJ – Quando Pio Corrêa foi nomeado embaixador no Uruguai, ou como dizia meu pai, foi ser policial no Uruguai logo depois do golpe, chamou para ajudá-lo nessa tarefa o Rui Dourado. Ele foi uma pessoa importante nas sombras da repressão. Quanto ao Pio Corrêa foi figura de proa e dele meu pai dizia, literalmente, que era um homem mau.

CM – O assassinato do Baumgarten foi antes ou depois da morte do seu pai?

LJ
– Meu pai foi o primeiro assassinato do Governo Figueiredo.

CM – E daqui em diante, quais providências serão tomadas pela família? Alguma cerimônia registrará de modo formal o que aconteceu?

LJ
– Haverá uma cerimônia oficial da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, em dezembro próximo. Mas a família fará uma homenagem simples o quanto antes. Mandaremos gravar na lápide de sua sepultura, no Cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro, a causa da morte como passou a constar do atestado, ou seja: “O falecimento ocorreu no dia 24 de março de 1979, na Cidade do Rio de Janeiro – RJ, em razão de morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro, no contexto da perseguição sistemática e generalizada à população identificada como opositora política ao regime ditatorial de 1964 a 1985”. Acrescentaremos apenas: (…) “sendo Presidente da República o General João Batista Figueiredo.” Para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça.

CMHá sobreviventes/agentes que estiveram envolvidos no episódio direta ou indiretamente?

LJ –
Com certeza o legista, Roberto Blanco dos Santos. Não sei o que você quer dizer com ”diretamente”, mas sem dúvida podemos dizer que as ordens para a eliminação de meu pai e a subtração dos documentos que comprovariam denúncias, da casa de minha mãe, a qual nunca foi apurada, partiram do alto escalão do governo. Que eu saiba o general Newton Cruz continua vivo. Infelizmente, se estão vivos ou não, pouco interessa já que, sem que se faça uma reinterpretação da Lei de Anistia de 1979 eles não serão responsabilizados. Sua vigência, como se dá hoje, favorece a cultura de impunidade dos crimes atuais cometidos por agentes públicos e permite que militares e civis defendam a tortura, que torturadores sejam homenageados dentro do Congresso Nacional e que ditadores continuem afigurar como nome de ruas, pontes e escolas.

CM – Qual o seu sentimento, Lygia, depois de quase quatro décadas de luta?

LJ
– Minha emoção está à flor da pele. Ver a satisfação dos meus filhos com o fato de termos conseguido dar mais este passo me faz ter certeza de tê-los educado como cidadãos conscientes. A maior preocupação deles no momento é, através deste resultado, poder mudar o voto de alguns que pensam votar no coiso. A manifestação de carinho de seus amigos me faz chorar. É bonito ver quantos jovens de bem existem neste pobre país. É reconfortante saber que minha luta ajudou, nem que tenha sido só um pouquinho, a formar suas consciências.

Publicado originalmente na Carta Maior.

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