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CNJ e jurisdição livre de sanção disciplinar: a democracia celebra uma decisão

CNJ e jurisdição livre de sanção disciplinar: a democracia celebra uma decisão

Uma importante decisão do Conselho Nacional de Justiça foi proferida em caso de extrema transcendência para a democracia e o respeito institucional.

Não é uma decisão espetaculosa, daquelas que se convertem em tema essencial de rodas de conversas, de discussão em grupos e redes sociais. É uma deliberação silenciosa, mas que deve ser exposta à luz.

Grandes decisões, muitas vezes, não são verbosas, grandiloquentes, derivadas de profunda pesquisa e substanciosa demonstração de capacidade argumentativa. Elas se imiscuem no silêncio da massa decisória, do expediente diário, nem sempre valorizado, raras vezes reconhecido.

Sucede que nesse universo dos truísmos judiciais, seja em atividade jurisdicional, seja no exercício de função administrativa, o Poder Judiciário se molda, se forma e se conforma aos padrões impostos pelas escolhas da sociedade e de seus parâmetros constitucionais.

Hoje tratarei de uma decisão de arquivamento de um pedido de providências, lavrada pela ministra Maria Thereza de Assis Moura, a corregedora nacional de Justiça, nos autos do Pedido de Providências nº 0003942-69.2020.2.0.0000, que tinha como requerido o desembargador Jorge Luiz Souto Maior, que integra o Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região.

À ocasião de sua abertura, ainda ao tempo em que o ministro Humberto Eustáquio Soares Martins exercia a Corregedoria Nacional de Justiça, por provocação da Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho a imprensa noticiou com destaque a instauração do procedimento. E foi tão rápida a difusão que o próprio magistrado soube pelos meios de comunicação social que responderia à imputação que lhe foi feita.

Aqui mesmo, nesta ConJur, a matéria foi veiculada em 23 de maio deste ano sob o título “Contrariou o CNJ: Corregedor pede providências por desconformidade com decisão do CNJ”. Inscreveu-se uma manchete que traz afirmação peremptória de que teria havido uma suposta renitência em atender a uma decisão do Conselho Nacional de Justiça.

No fundo, já havia ali uma censura a uma decisão jurisdicional, algo que, no âmbito da polarização que caracteriza a nossa sociedade, tem se desenvolvido perigosamente.

Ocorre que enquanto a tentativa de impor a censura recebe ampla divulgação, a decisão absolutória, de reconhecimento de impossibilidade ou de descabimento da sanção raramente é tão difundida, iluminada ou sublinhada quanto a iniciativa com propósito disciplinar.

O caso não é isolado. Tenho acompanhado alguns episódios de verdadeira derivação da função disciplinar acometida ao Conselho Nacional de Justiça e que alcançam, em especial, magistrados que se colocam na cena pública como defensores de teses e interpretações jurídicas tendentes à melhoria da condição social da classe trabalhadora (o que atende a comando expresso contido no caput do artigo 7º da Constituição Federal), na Justiça do Trabalho; e aqueles que, no campo penal, exigem do Estado o respeito absoluto às garantias dos cidadãos.

Note-se, por exemplo, o que ocorreu no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo com o juiz Roberto Luiz Corcioli Filho, punido pelo órgão especial com censura por decidir judicialmente com “viés ideológico”, maculado que estaria pela ideia de “garantismo”, da qual resultam decisões que se caracterizam por “soltar muito” os cidadãos encarcerados no sistema já declarado pela Suprema Corte como um genérico e indefinível “estado de coisas inconstitucional”.

A crítica é algo inerente ao ser humano. E deve ser respeitada e desenvolvida como atividade de examinar, escrutinar, avaliar minuciosamente uma produção artística, literária, científica, de costumes, comportamental, política etc.

Na verdade, nada e ninguém escapam à crítica. A crítica é irmã gêmea siamesa do direito de expressão, o qual não tem, a priori, qualquer conteúdo ideológico. O que não se pode aceitar é que seja feita a crítica aos juízes com objetivo punitivo e que derive de divergência de mérito em julgamentos contrários ao pensamento mainstream do Judiciário.

Quizilas e querelas interpretativas não podem se converter em instrumento de poder disciplinar.

Aos magistrados de todos os graus deve-se assegurar a jurisdição sem receio de censura ou sanção disciplinar.

Por isso é tão importante a decisão da ministra corregedora-geral de Justiça que determina arquivar um procedimento fundado em um conjunto de presunções e preconceitos perigosos aos princípios democráticos: a ideia de que o magistrado, tenha ele o conteúdo ideológico que tiver, deva ser constrangido a receber os influxos ideológicos alheios, sob o rótulo de disciplina judiciária, constitui grave erro.

O limite de atuação do magistrado não está na obediência cega aos dirigentes do poder do qual é órgão, nem numa disciplina hierarquicamente composta de modo vertical.

O magistrado obedece à lei.

Dentro do cárcere da lei, tem liberdade de caminhar, inclusive para exercer os controles de constitucionalidade, convencionalidade e compatibilidade com o sistema legal e com as regras que lhe são superiores e que lhe dão fundamento de validade.

Acaso no exercício da jurisdição isso se tenha realizado, o magistrado não pode ser punido.

A atividade judiciária está sujeita ao sistema recursal próprio, interno, ínsito ao devido processo legal, que garante o espaço à crítica da jurisdição, sem abrir as portas para a persecução do juiz.

Qualquer tentativa de conduzir essas decisões judiciais ao crivo disciplinar constitui um equívoco e um atentado não ao magistrado, mas ao sistema que deve atribuir e garantir a quem julga a imprescindível liberdade para o exercício de suas elevadas e importantes funções, sempre sob obediência ao Direito.

Prerrogativas, sejam dos juízes, sejam dos advogados, funcionam como garantia do sistema, uma asseguração, que, ao fim, destina-se a toda sociedade, e não apenas aos profissionais a que se referem.

Por isso, celebro a decisão da corregedora nacional de Justiça, que, em ementa, diz:

“Pedido de providências. Desembargador. TRT-15. Possível desconformidade com o decidido no PCA nº 9.820-09. Esclarecimentos prestados satisfatórios. Falta funcional não configurada. Arquivamento”.

Na fundamentação, a singeleza da conclusão confere-lhe beleza:

“(…) A decisão proferida pelo desembargador está fundamentada, não se vislumbrando indícios de prática de infração disciplinar ou violação a deveres funcionais apta a ensejar a atuação desta Corregedoria Nacional de Justiça.
A apuração disciplinar de uma eventual falta funcional praticada por magistrado, no que tange a prolação de decisões judiciais, exige a presença de indícios de que houve inclinação voluntária do uso do instrumento processual para consecução de fim ilícito ou indevido, o que não verifica-se na presente ocasião”.

Trata-se de importante imposição de autocontenção do poder de impor sanção em respeito à lei e às funções da Corregedoria-Geral de Justiça, que conclui:

“(…) O objeto do presente feito possui natureza jurisdicional, não cabendo à Corregedoria punir a atuação de magistrado que agiu no legítimo exercício de suas funções”.

Saber que a Corregedoria-Geral de Justiça não se arvorará em converter-se na palmatória do Judiciário tranquiliza-me como advogado e cidadão.

Recentemente, em 6 de novembro, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Estado chileno por uma sanção imposta pelo Poder Judiciário ao juiz Daniel Urrutia Labreaux por tecer críticas à atuação de seus órgãos ao tempo da ditadura militar em um artigo acadêmico.

Naquela decisão, são rememorados alguns aspectos que não se podem perder de vista, como o artigo 4 do Estatuto do Juiz Iberoamericano, que diz:

“Artigo 4 — Independência interna: No exercício da jurisdição, os juízes não se encontram submetidos a autoridades judiciais superiores, sem prejuízo da faculdade destas de revisar as decisões jurisdicionais através dos recursos legalmente estabelecidos e da força que cada ordenamento nacional atribua à jurisprudência aos precedentes emanados das cortes supremas e tribunais superiores” [1].

Uma democracia necessita de juízes com poderes horizontais, de coordenação, jungidos às suas atribuições e competências. Nesse sentido, não há juízes superiores e inferiores.

No caso Apitz Barbera vs. Venezuela, a Corte Interamericana de Direitos Humanos assentou que os juízes não devem ser obrigados a evitar discordar do órgão revisor de suas decisões, que, em última análise, exerce apenas uma função judicial diferenciada e limitada a abordar os pontos recursivos das partes dissidentes com a decisão original” [2].

Impende que o Poder Judiciário se compreenda como órgão de Estado que não se organiza como corporação vertical, mas como um ente que assegura a independência interna do juízes, que não são subordinados incondicionais à autoridade dos seus próprios órgãos colegiados, que não têm o condão de paralisar a dinâmica interpretativa sobre a aplicação do Direito [3].

Sejam os juízes livres para julgar, tendo a lei como limite. Saibam que decisões fundamentadas desafiam recursos, inclusive que veiculem críticas, mas não sanções disciplinares.

Mais do que fundamentar a força de sua autoridade, a corregedora nacional de Justiça deixa a mensagem ao Poder Judiciário de que a sua autoridade advém da força da fundamentação das suas decisões judiciais.

E, nesse sentido, quem celebra a decisão da ministra Maria Thereza de Assis Moura não é o desembargador Jorge Luiz Souto Maior, nem o cidadão que escreve este artigo. É a democracia a grande vitoriosa.


[1] Cúpula Ibero-Americana dos Presidentes da Suprema Corte. Estatuto do juiz Ibero-Americano. Aprovado na VI Cúpula realizada em Santa Cruz de Tenerife, Ilhas Canárias, Espanha, nos dias 23, 24 e 25 de Maio de 2001, artigo 4º.

[2] Caso Apitz Barbera y otros (“Corte Primera de lo Contencioso Administrativo“) Vs. Venezuela. Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y CostasSentencia de 5 de agosto de 2008. Serie C No. 182. párr. 84.

[3] Nesse sentido, veja-se a declaração de voto do juiz Patrício Pazmiño, da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Urrutia Labreaux x Chile.

Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.

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