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‘Crônica de um massacre anunciado’ ou ‘A prisão nos tempos da cólera’

Por Mário Rheingantz e Emanuel Queiroz Rangel

Em meio a uma pandemia de proporções jamais vistas nesses tempos, que, apesar dos pesares, poderia ministrar à humanidade verdadeiras lições de empatia e espírito coletivo diante do inimigo comum, o Ministério da Justiça e Segurança Pública, por meio do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), propõe medida que sepulcra de vez qualquer resquício de solidariedade humana.

Por meio do OFÍCIO Nº 806/2020/GAB-DEPEN/DEPEN/MJ, o Ministério recomenda, em síntese, a criação de vagas em Contêineres e outras estruturas provisórias para abrigar pessoas privadas de liberdade. Tudo a pretexto de fornecer respostas à crise sanitária provocada pela covid-19, com repercussão no sistema prisional.

Não bastasse o fato de se pretender, em tempos em que o isolamento social é a principal arma para frear o contágio pelo Novo Coronavírus, aglomerar pessoas dentro de estruturas metálicas destinadas ao acondicionamento de cargas (contêineres), dois aspectos do pedido causam especial perplexidade. O primeiro é que tais estruturas sejam dispensadas dos requisitos estabelecidos pelas Diretrizes Básicas para Arquitetura Penal. Ou seja, desprezam-se os requisitos mínimos exigidos para construções destinadas à permanência de presos. É bom lembrar que tais diretrizes garantem premissas básicas em diversos aspectos da arquitetura penal, notadamente termos de circulação de ar, o que ganha ainda mais importância na situação da atual Pandemia. O segundo aspecto diz respeito a quem será colocado em tais estruturas: segundo o ofício, pessoas presas não contaminadas, mas idosas, diabéticas, hipertensas, asmáticas ou com outras comorbidades, bem como – pasmem! – pessoas presas contaminadas, mas que não apresentem complicações que demandem tratamento médico intensivo.

A tragédia é anunciada. Assim como no romance de Gabriel Garcia Marquez, em que todos anteviam o que ocorreria naquele dia em que “Santiago Nasar levantou-se às 5h30min da manhã para esperar o Navio em que chegava o Bispo”[1], não é preciso um grande exercício de futurologia para adivinhar as consequências de se deixar pessoas aglomeradas em ambientes fechados em tempos de Coronavírus.  Também é notória a superlotação do sistema prisional brasileiro, a ponto de o Supremo Tribunal Federal ter reconhecido o Estado de coisas inconstitucional.

É de se estranhar, aliás, que a medida vem justamente na contramão da recomendação 62/2020 do Conselho Nacional de Justiça[2], que visando evitar a contaminação e propagação do vírus entre pessoas presas, familiares e profissionais que integram o sistema de justiça e o sistema penitenciário, recomenda medidas de redução de aglomerações em unidades de internação coletiva, propondo diversas medidas de caráter humanitário que podem servir como freio ao contágio provocado pela Pandemia, reduzindo o impacto negativo do único que deve ser tratado como inimigo, o Coronavírus.

Não se pretende aqui trazer um debate técnico sobre as medidas necessárias ao combate da Pandemia, em que pese a aparente unanimidade na comunidade científica a respeito da necessidade de distanciamento físico entre seres humanos. Entretanto, em tempos de “negacionismo” inconsequente, até mesmo o óbvio deve ser pontuado como tal. E a conclusão inarredável é que aglomerar pessoas em caixas metálicas lacradas e sem circulação de ar tem um incalculável potencial para ampliar as consequências da Pandemia e gerar mortes, muitas mortes.

Em tempos de tanta preocupação com a vida, não é aceitável que algumas vidas não tenham valor. Portanto, ações devem ter por base a preocupação com todas e todos, pois se algumas pessoas estão privadas de liberdade, não o estão ou não deveriam estar privadas da vida, da saúde e da dignidade. Se a Pandemia não nos trouxe a lição de que todos somos Humanos é porque a maior doença de nossos tempos não é o Corona, mas sim “a cólera”.

Não há qualquer inovação na tentativa de utilização de contêineres-cela, inclusive sem a adequação das Diretrizes Básicas para a estrutura penal, para colocar pessoas presas. Nas tentativas anteriores, quando não havia uma situação de Pandemia, a antijuridicidade da utilização para essa finalidade foi reconhecida pelo Poder Judiciário. Relembre-se a decisão do Superior Tribunal de Justiça no Habeas Corpus 142.513-ES, em que a Sexta Turma, por unanimidade, concedeu a ordem para vedar a utilização de contêiner como cela. Naquela ocasião, em trecho do voto, o relator, Ministro Nilson Naves bem definiu que:

Isso é humilhante e intolerável! Pois se tal já resultou em reclamação, reclamo eu também. Reclamo e protesto veementemente, porquanto em contêiner se acondiciona carga, se acondicionam mercadorias, etc.; lá certamente não se devem acondicionar homens e mulheres. Eis o significado de contêiner segundos os dicionaristas: “recipiente de metal ou madeira, ger. de grandes dimensões, destinado ao acondicionamento e transporte de carga em navios, trens etc.”; “cofre de carga”; “grande caixa (…) para acondicionamento da carga geral a transportar”. Decerto somos todos iguais perante a lei, e a nossa lei maior já se inicia, e bem se inicia, arrolando entre os seus fundamentos, isto é, entre os fundamentos da nossa República, o da dignidade da pessoa humana.

Nesse mesmo sentido, aliás, em 2018, no Estado do Rio Grande do Sul, houve a utilização de contêineres cela junto ao Instituto Penal de Novo Hamburgo. A situação não passou despercebida pela Defensora Pública que atuava na execução penal e que provocou o Núcleo de Defesa de Direitos Humanos e o Núcleo de Execução Penal. Na ocasião, em inspeção no local, verificou-se a evidente  falta de condições em função da ausência total de tratamento térmico, capaz de gerar calor insuportável no verão e frio excessivo no inverno, bem como falta de condições adequadas de aeração e de espaço, especialmente considerando a quantidade de presos por contêiner, qual seja, dezesseis presos para um espaço de 6m de cumprimento x 2,5m largura: ou seja, menos de 1 metro quadrado para cada pessoa. No mesmo sentido, o parecer técnico 04/2018, elaborado pela Diretoria de Engenharia, Arquitetura e Manutenção Predial da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, constatou a inadequação, que em grande medida era resultado justamente da falta de capacidade de aeração do local, que estava em desconformidade com as Diretrizes Básica para Arquitetura Penal, aquelas mesmas que o DEPEN pretende descumprir em seu ofício.

Em função disso, a Defensoria Pública requereu ao Tribunal de Justiça a proibição do uso daquelas estruturas, através de Habeas Corpus Coletivo e Agravo em Execução. A Sétima Câmara Criminal concedeu Habeas Corpus Coletivo ao julgar o CAE Nº 70080474125 (Nº CNJ: 0019321-50.2019.8.21.7000). Chamam atenção e merecem leitura integral o teor dos votos do redator Des. Carlos Alberto Etcheverry que, aliás, foi pessoalmente verificar os contêineres, e do Des. José Conrado Kurtz de Souza. Destaca-se, no entanto, para o momento em debate, o seguinte trecho em que o redator expõe o que constatou quando de sua visita “in loco”:

Os contêineres abrigavam 16 indivíduos cada um. Foi possível observar que: – os contêineres não possuem janelas, tendo como único local de acesso e de entrada de luz as grades instaladas na parte da frente (existem aberturas gradeadas na parte superior das duas laterais, com pequena altura e gradeadas, mas que não permitem a passagem de luz); – os bancos foram arrancados, inicialmente pelos presos, e, depois, por determinação judicial; – não há camas nem colchões no local; – para as necessidades fisiológicas dos presos, foi instalado no interior de cada um dos contêineres um vaso “turco” (próximo ao chão) e uma pia, que verte água fria, sendo a única água disponível para a higiene; – o lugar é úmido e escuro; – não tinha sido realizada limpeza desde sua ocupação; (…) O que se viu foram duas caixas de metal, sem qualquer adaptação relevante para que sejam consideradas aptas à ocupação humana, cada uma abrigando 16 homens, amontoados, sem colchão, sem banho, no frio, na umidade, mal agasalhados, sem alimentação adequada, em condições que aviltam a dignidade humana. (…)[3]

Diante de tudo isso, causa espanto a intenção do Estado de amontoar, nesses claustrofóbicos espaços, justamente pessoas com condições de saúde já debilitadas – idosos, diabéticos, hipertensos, asmáticos  com outras comorbidades ou até mesmo contaminados pelo vírus . Outro não pode ser o fundamento de tamanha desumanidade, do que pensar na vida da pessoa presa como uma vida insignificante, que vale menos do que a das demais. É considerar, também, as pessoas presas como se não fizessem parte da sociedade, embora inequivocamente a integrem. Como bem lembrado no início de seu voto pelo Des. José Conrado Kurtz de Souza, no mesmo julgamento, “os presos fazem parte, sim, da sociedade. Eles estão temporariamente afastados do convívio social, mas eles fazem parte da sociedade. Há uma diferença grande aí e não é só semântica, é conceitual, de fundamento.” Portanto, a proposta do DEPEN é contrária ao Direito e já foi afastada por precedentes que reconheceram seu descabimento. Com mais razão ainda, é ilegal e atenta contra os mais básicos direitos fundamentais, a começar pela vida, que tanto deve ser protegida, seja do Coronavírus, seja da “cólera”.

Se não agirmos com espírito de Humanidade e coletividade, em breve, seremos forçados a utilizar contêineres para, sistematicamente, abrigar cadáveres.

Artigo publicado originalmente em O Estado de S. Paulo.

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