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Delatores ainda têm medo de falar, diz diretora de filme da Vaza Jato

Delatores ainda têm medo de falar, diz diretora de filme da Vaza Jato

Por Flávia Guerra

A premiada cineasta Maria Augusta Ramos esperava ter meses de descanso depois de concluir, em 2018, o lançamento de “O Processo”, que estreou mundialmente no Festival de Berlim e no qual documenta os bastidores do processo que culminou no impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016. Mas, quando o assunto é a História recente do Brasil, a história está longe de ser um capítulo encerrado. Pouco tempo depois de uma provocação, ou um chamado à ação, a diretora embarcou em outra jornada que renderia anos de trabalho: realizar um documentário sobre a Lava Jato.

Como o novelo (ou o imbróglio) desta nossa recente História é interminável, era crucial encontrar uma linha narrativa que guiasse o filme e, consequentemente, o espectador. Encontrou na figura de quatro jornalistas e em seu trabalho de apuração da Lava Jato, da Vaza Jato e seus desdobramentos o fio condutor do filme. Ao acompanhar Leandro Demori (do Intercept), Carla Jiménez, Regiane Oliveira e Marina Rossi (as três do El País) em seu trabalho, entrevistas e reuniões, Maria Augusta reconstrói a história da Lava Jato e faz algo mais profundo que apenas um resumo do processo. Nesta releitura, ela investiga não só a Lava Jato ou a Vaza Jato, mas principalmente as consequências do processo para o presente e o futuro do Brasil.

Sempre adotando um estilo sóbrio, de “Cinema Direto” (em que não há entrevistas por parte do diretor do documentário, mas sim a observação dos fatos que ocorrem diante da câmera), mesclado às imagens de arquivo da própria Lava Jato (como o depoimento de Lula ao então juiz Sergio Moro) e cenas do processo e do desenrolar da Vaza Jato, entre outros fatos, como, por exemplo, a reunião de Jair Bolsonaro com seus ministros em abril de 2020, quando o Brasil enfrentava duramente a pandemia de covid-19, Maria Augusta constrói uma teia complexa, mas clara sobre o impacto destes últimos cinco anos para a própria democracia no Brasil.

As entrevistas que vemos são, a propósito, todas realizadas pelos jornalistas, inclusive a já famosa com o ex-executivo da Odebrecht Alexandrino de Alencar, em que ele afirma que sofreu pressão dos procuradores da Lava Jato para fornecer informações relacionadas a Lula. Entremeando a trama, há também as mensagens trocadas em um dos grupos do Telegram dos procuradores, reveladas pela Vaza Jato, que se chama grupo Amigo Secreto. Nasceu daí o título do filme.

Para completar o mosaico desta trama, o filme traz imagens contemporâneas de protestos e movimentações em torno de Bolsonaro, como o ato na Avenida Paulista em 2021. Não é por acaso que o presente encerra o filme, afinal, a História continua em aberto e, em um País em que é clichê dizer que não se tem memória, ter a perspectiva dos fatos recentes é crucial para se construir não só no cinema, mas nossa História futura.

Vale citar que “Amigo Secreto” é uma coprodução da Vitrine Filmes, ZDF em associação com a franco-alemã ARTE, uma produção Nofoco Filmes, Gebrueder Beetz Filmproduktion, Docmakers, com patrocínio do IREE, do Grupo Prerrogativas, e da FENAE, além de contar com o apoio do Netherlands Film Fund e The Netherlands Film Production Incentive. Os filmes anteriores da diretora (os premiados “Juízo”, “Justiça”, “Futuro Junho” e “O Processo”) estão todos disponíveis na Netflix.

Em entrevista a esta coluna de Splash, Maria Augusta contou mais detalhes do processo de filmagem (que começou antes da Vaza Jato e atravessou os dois primeiros anos da pandemia), dos desafios e do porquê de contar esta história: “Eu adoro um desafio.”

Flávia Guerra — Queria começar falando sobre algo que é uma sensação muito pessoal, mas que poucas vezes a gente vê algo tão desenhado para o público, que é a importância da Imprensa nesse processo. Não só nesse processo mas na questão democrática porque sinto que o brasileiro tem historicamente uma noção muito incompleta sobre qual é a função da imprensa em uma democracia. A própria imprensa, às vezes, não entende o seu próprio papel. Então a escolha de colocar os jornalistas como guias nessa narrativa, mas também papel da imprensa, foi muito acertada. Não a imprensa que é desse ou daquele lado, mas a imprensa bem informada, livre, com tempo. Queria que você falasse um pouco dessa escolha.

Maria Augusta — Concordo plenamente. A imprensa tem um papel fundamental na saúde da democracia. E, de uma certa maneira, o papel que a imprensa teve durante a Lava Jato, esse infeliz conluio entre os procuradores e Sérgio Moro, a a força-tarefa da Lava Jato e alguns órgãos da mídia, alguns jornalistas. E também essa dificuldade que outros jornalistas, que não estavam nesse conluio, mais que tinham dificuldade em digerir toda aquela informação que era, enfim, jogada em cima deles diariamente. Como mesmo diz o Demori (Leandro), era uma máquina de produzir notícias. Isso prejudicou muito o país, prejudicou muito a democracia, o que a gente está vivendo hoje com essa essa fragilidade, a fragilização das instituições democráticas, a criminalização da política, a demonização do Supremo Tribunal Federal. Isso tem origem na Lava Jato. E tem origem não só na metodologia da Lava Jato, mas em como a Lava Jato manipulou e, com esse conluio da imprensa, então, manipularam a opinião pública nesse sentido. Importante também, e acho que o filme mostra isso, é que a imprensa pode e deve, sim, mostrar o outro lado. Fazer o que ela deve fazer. Voltar a fazer investigações jornalísticas, minuciosas, de questionamento, críticas, da busca pela verdade, que deveria também ser o objetivo da Justiça. A verdade do fato existe. Nem tudo são versões. A Terra é redonda. Isso é um fato.

Flavia Guerra — Os jornalistas também conduzem as entrevistas do filme. Eles são os protagonistas.

Maria Augusta — Isso. Não uso entrevistas, não entrevisto ninguém. Meus filmes são sempre protagonizados por personagens, por pessoas reais que que me possibilitam filmá-las, pessoas que me inspiram porque os filmes são sempre construções do cotidiano dessas pessoas, das relações humanas, das relações sociais. Então me pareceu quase que natural, quase que óbvio que esse filme deveria ter esse jornalistas como os protagonistas e eu tive a felicidade de encontrar pessoas incríveis. Eu tenho muita admiração pelo Demori, muita pela Carla Gimenez, pela Regiane e pela Marina. Sou muito grata por que é muito difícil de se dar a uma equipe de filmagem. Você tem que confiar muito. Sou grata pela confiança e pela dedicação porque eu posso fazer qualquer coisa com essas imagens. O meu comprometimento é com a ética, com a verdade também, com a busca da verdade, com esse respeito por esses personagens, assim como com os outros públicos que estão no filme, como o presidente Lula, com o Sergio Moro, como o Bolsonaro. Eu não preciso ridicularizá-los e nem é essa a intenção. Nunca foi intenção nos meus filmes ridicularizar ninguém.

Flavia Guerra — Vivemos um momento em que estamos muito acostumados a uma narrativa de documentário norte-americano, que os streamings têm trazido. Mesmo quem viu “Processo”, mas talvez não tenha visto “Juízo” ou não viu os outros filmes seus, como “Justiça”. Mas não estamos acostumados com os tempos que você traz, os tempos mortos, que muitas vezes uma apuração do jornalismo tem. A gente está acostumado muito com uma narrativa que entrega tudo mastigadinho, que não deixa um tempo de ver o processo. O seu cinema é um cinema de processo, em que a investigação do processo do jornalista vai revelando também, e a gente vai descobrindo junto, o que é interessante. Dito isso, as entrevistas que estão no filme são as feitas pelos jornalistas que você testemunha. E você foi criando e cinema de processo mais uma vez. Como se deu isso?

Maria Augusta — As entrevistas que ocorrem no filme são feitas pelos próprios jornalistas, que são os protagonistas. Eles é que escolhem. Claro que havia uma troca entre eu e eles, mas certamente partiu deles a vontade de entrevistar algumas das pessoas, por exemplo os juristas. E tenho que falar da questão da entrevista com Alexandrino de Alencar, que foi tão divulgada agora pela Mônica Bergamo (Folha de S. Paulo). Ele foi o único delator que concordou em ser entrevistado. E isso é importante de dizer isso aqui porque todos têm muito medo. Todos têm muito medo ainda da Justiça. Medo, apesar de que em grande parte desses processos houve ilegalidades, houve parcialidades. Isso diz também alguma coisa desse sistema que a gente está vivendo.

Flavia Guerra — Difícil, não?

Maria Augusta — Sim. Me perguntaram outro dia “não tem outra pessoa”? Não. Não tem porque eles não têm coragem de falar porque ainda estão cumprindo pena, porque ainda estão em juízo, porque os acordos envolvem não falar, porque eles têm que manter segredo e eles têm medo de serem prejudicados nos seus acordos. Enfim, é algo que tem que ser revisto.

Flavia Guerra — Este medo é natural. A gente entende que é um processo muito complicado. Aliás, é um processo complicado para você também. O convite para dirigir “Amigo Secreto” partiu do pessoal do Prerrogativas? E essa sua disposição para depois de “O Processo”, que é um documentário também muito caudaloso, para se jogar novamente neste projeto.

Maria Augusta — Confesso que eu também não estava esperando porque depois de “O Processo”, eu também queria meses e meses de descanso. Um dia estava em casa e recebi um telefonema de alguns advogados, de uma advogada em nome do grupo Prerrogativas. Esse telefonema não foi exatamente um convite. Este não é um filme institucional. É importante que isso fique claro. Foi um estímulo, uma provocação. Isso foi antes da Vaza Jato. Claro que no grupo Prerrogativas, não só no grupo de advogados mas também no grupo de juristas e mesmo de juízes progressistas havia já denúncias. E já se criticava o modus operandi da Lava Jato há muito tempo. Então, havia a provocação foi no sentido de que ‘veja o que está acontecendo, veja esse outro lado e veja se não é interessante e importante que se faça um documentário sobre esses processos.” O processo do presidente Lula, por exemplo. Da mesma maneira em que o processo do filme “O Processo” foi feito para desconstruir a narrativa, uma determinada narrativa, para mostrar o outro lado da narrativa em favor do impeachment, mostrar também a narrativa contra o impeachment, eles me propuseram e me estimularam a pensar isso. E eu adoro um desafio. Depois eu me arrependo. No meio da história digo “nunca mais”!

Flavia Guerra — E assim começou. Você veio ao Brasil para iniciar o projeto?

Maria Augusta — Sim. Eu vim ao Brasil e comecei a pensar, conversar com advogados, a fazer uma pesquisa. E aí aconteceu a Vaza Jato. E aí eu procurei o Demori e conversei também com o Glenn Greenwald, mais rapidamente, mas tive um contato maior com o Demori, que é uma pessoa mais acessível também porque o Glenn é uma figura pública, muito importante e muito assediada. E fui descobrindo esse processo, no qual os jornalistas estavam imbuídos, dessa investigação criteriosa, ética, de descoberta desse mundo da Lava Jato que estava por baixo dos panos. Eu estou falando isso porque estou lembrando do cartaz do filme maravilhoso que a Clara Moreira fez, que é essa mão debaixo dos panos.

E em termos de construção cinematográfica foi um processo maravilhoso. Era um processo de investigação que estava ali na minha frente, com aquelas pessoas que, depois através do Leandro, eu conheci a Carla Jiménez, do El País, a Marina e a Regiane, que quiseram participar. E daí a estrutura vai se formando, a ideia de segui-los e de que eles fossem o guia do filme se concretizou. E nesse momento, é claro, a gente começou a filmar sem dinheiro, sem financiamento. E aí o primeiro patrocínio que a gente conseguiu foi do Instituto da Reforma das Relações entre Estado e Empresa (IREE) e depois nós conseguimos apoio da FENAE e aí fomos para fora para tentar conseguir suporte e apoio do Netherlands Film Fund, que apoia todos os meus filmes, e depois conseguimos a coprodução com a Arte e com a ZDF. E o grupo Prerrogativas sempre foi um parceiro constante também porque me ajudava, também me davam apoio, falando de perigo, digamos assim, eu preciso de desses advogados que não só me aconselham e me ajudam na pesquisa, mas também que possam me defender se necessário for. Não acredito que será necessário, mas são realmente grandes parceiros. Nenhum deles tentou influenciar de qualquer maneira. Para mim, o comprometimento com a ética e com a verdade é muito importante. Eu jamais permitiria algo.

Flavia Guerra — Com certeza, acho que isso fica bem claro. Queria que você explicasse de onde vem esse “Amigo Secreto” e também a questão de para quem você fez esse filme. Há uma característica que gosto muito no seu cinema, que é a sobriedade. Acredito que o documentário quanto mais sóbrio possível melhor, principalmente quando há um tema desse, tão delicado como o político. Para que a gente possa ter a construção da nossa opinião sobre um caso assim. Documentário não é jornalismo necessariamente, mas nesse caso acho que a sobriedade é a melhor escolha que você pode fazer.

Maria Augusta — O título “Amigo Secreto” foi inspirado em um dos grupos do Telegram dos procuradores, que se chama grupo Amigo Secreto. E no filme há duas cenas em que os protagonistas, no caso o Leandro Demori, falam de uma de uma matéria que ele faz, que é baseada em mensagens, em diálogos que são desse grupo Amigo Secreto. O ministro Gilmar Mendes, no julgamento da suspeição, nós filmamos uma parte dele, também se refere a esse grupo e também cita mensagens desse grupo, mensagens de Deltan (Dallagnol) a outros procuradores. É claro que a gente pode pensar que no filme se tem vários possíveis amigos secretos. E aí acho que o público tem que assistir ao filme e também deduzir por si só.

Flavia Guerra — Que é a proposta do seu cinema, não? Sempre o chamado “Cinema Direto”.

Maria Augusta — Sim. Eu acho que a proposta do meu cinema é essa. Sempre foi. É claro que não é um cinema imparcial, o que não existe. Nem é um documentário imparcial, o que também não existe. O documentário é o meu filme. É a minha representação dessa realidade; é a minha minha leitura do que vivi durante essas filmagens, do que documentei e depois também o processo de reflexão durante edição, de rever com distanciamento todo esse material, fazendo escolhas para contar e formar esse retrato desses anos. É uma proposta de cinema reflexivo, de levar o público a pensar, de dar esse espaço de som e imagem para que o espectador seja capaz de ouvir, digerir situações e cenas que são muito densas, em geral, no caso de “O Processo” e de “Amigo Secreto”, e fazer associações por si só. Não são filmes que defendem uma tese ou que direcionam e que têm uma estrutura cujo objetivo é direcionar o público em relação a um tipo de opinião ou outra, uma tese ou outra, mas sim de refletir mesmo, de fazer associações e de rever também acontecimentos de um passado próximo e até de um presente bem próximo e fazer ligações entre eles e pensar, a partir daí, um futuro, que futuro teremos, por exemplo, se o atual presidente Bolsonaro for reeleito. Que futuro queremos para este País. Nesse sentido, não estou dizendo para ninguém votar no Lula ou no Bolsonaro. Estou convidando o público a uma reflexão sobre as consequências do governo atual e o que nos trouxe. Se você me perguntar em quem eu vou votar, eu vou te dizer, mas como cidadã brasileira. Não é necessariamente um filme fácil, como meus filmes anteriores também não são.

Flavia Guerra — Era exatamente sobre isso que ia perguntar. O que foi mais difícil neste filme?

Maria Augusta — A covid foi bastante complicada. O fato de que nós tivemos que parar um ano e meio praticamente. Filmamos só as cenas que eram fundamentais, momentos e acontecimentos fundamentais que precisavam ser mas precisavam ser documentados. Isso foi bastante difícil. Na questão da edição, lidar com esses dois tempos: o passado e o presente. De uma certa maneira, esse presente que está grávido do futuro, que carrega a possibilidade desses dois futuros possíveis. O filme é contado cronologicamente. Ele começa no primeiro vazamento das mensagens e os jornalistas começam a investigar a Lava Jato. Ele se passa no presente, mas em algum momento há uma volta ao passado, que é o passado da Lava Jato, que são as audiências, tudo que aconteceu durante os processos. Então, por exemplo, há as audiências do Lula com o Sérgio Moro, o julgamento do Lula, o próprio powerpoint, que não poderia estar fora no filme. É isso, mas talvez o pior tenha sido a covid. Tomamos todas as medidas de segurança e, graças a Deus, ninguém da equipe pegou covid.

Entrevista publicada originalmente na UOL Splash.

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