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Por Que Acredito em Lobisomem — o livro (jurídico) surpreendente!

Por Que Acredito em Lobisomem — o livro (jurídico) surpreendente!

Abstract: Ainda existem lobisomens no Direito brasileiro?

A coluna hoje é diferente. Faço uma resenha e uma indicação de leitura. Falo do livro Por Que Acredito em Lobisomem, de Serafim Machado, agora em nova edição com prefácio de minha lavra e com documentos novos, retirados do fundo do baú.

Havia lido nos meus tempos de faculdade. O título virou um “meme” ou slogan. Qualquer decisão bizarra do judiciário e se dizia: A decisão comprova que existem lobisomens… Assim o perdedor explicava a sentença ou acordão: “Eu acredito em lobisomem”.

Volta-me o livro quatro décadas depois. Li-o com os olhos de agora. Mas sempre levando em conta aquilo que Hans-Georg Gadamer chamou de Wirkungsgechichtliche Bewusstsein.

Talvez uma frase que possa resumir o livro seja “no Direito é possível correr sozinho e chegar em segundo”.

A história é verídica e tem uma densa narrativa. Uma senhora fora interditada no interior do Rio Grande do Sul. A decisão judicial a declarou absolutamente incapaz para qualquer ato da vida civil. Isso no final dos anos 30 do século XX, quando ela tinha 77 anos. O laudo atestou que a infeliz era portadora de oligofrenia, tinha microcefalia, era débil mental e, entre outras coisas, tinha aspecto simiesco. Portanto, absolutamente incapaz, enquadrada na clara textualidade do Código Civil.

A decisão foi confirmada pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Ocorre que, três anos após, 1941, a partir de dois atestados médicos clínicos, a interditada foi considerada em condições mentais “ad hoc“, isto é, excepcionalmente fora desinterditada para dispor de seus bens em testamento, continuando incapaz, todavia, para os demais atos.

Inusitado: a interditada testou seus bens para os dois filhos de seu curador. Registre-se que essa “desinterdição ad hoc” não teve objeção do Ministério Público e, é claro, do juiz da Comarca.

Assim, na medida em que a senhora, já então com 80 anos, “recuperara” a capacidade, o curador levou-a uma fazenda e lá um escrivão já levou preenchido o testamento.

E aí começa o imbróglio. A saga. O drama. O início das sendas em que pisou o lobisomem perseguido pelo advogado Serafim Machado.

Uma sobrinha, que recebera uma pequeníssima parte no testamento, ingressa então com uma ação de nulidade de testamento, porque, além dos defeitos formais do documento, não teria sido ditado pela testadora. Afinal, ela era oligofrênica e o ato fora fruto de captação dolosa.

Um artigo do Código Civil de 1916 “iluminava” a causa, o artigo 1.627, que dizia: São incapazes de testar: os que, ao testar, não estejam em seu perfeito juízo.

Serafim, a cavaleiro do Código Civil, vence essa primeira batalha na Comarca. A parte contrária — afinal, era uma fortuna de enormes proporções (algo em torno de mais de cinco mil hectares e milhares de cabeças de gado) — interpõe apelação ao Tribunal de Justiça do Estado. Por dois votos a um, Serafim vence.

Porém, sete anos depois, são julgados os embargos. Que revertem o resultado. Interessante o teor da decisão do Tribunal : “apesar de a velha senhora sofrer de oligofrenia e ser débil mental, tinha capacidade para testar…”.

O advogado — autor do livro do qual estou falando — foi em frente. Ao Supremo Tribunal Federal. Não vou dar spoiler. É uma saga.

O livro, agora reeditado pela Editora Rigel, traz documentos novos. Inclusive o acórdão da Ação Rescisória.

Uma pergunta que ficará: O que veio antes? O slogan “por que acredito em lobisomem” ou o livro “Por que Acredito em Lobisomem”, de Serafim Machado?

O leitor descobrirá saboreando as centenas de páginas. O enredo do livro dá filme. Um mini série televisiva.  

Afinal, tem ação, drama e suspense.

Longa história. Começa nos anos 30 do século XX e termina nos anos 80. Depois que achava que ganhara, Serafim perdia. Da comarca do interior ao Supremo Tribunal Federal.

Quem tinha razão? O leitor fará a sua interpretação. E tirará suas conclusões. Para usar em sala de aula é um achado.

Já para mim, pesquisador e professor de Direito, importa registrar que as idiossincrasias jurídicas contadas por Serafim Machado dizem um pouco — e muito — acerca de que como existem dois mundos no Direito: um, o da realjuridik, aquilo que realmente acontece com a interpretação das leis e, o outro, como esse Direito é contado no mundo dos livros jurídicos e dos professores nas salas de aula.

A doutrina cria vida própria; as práticas jurídicas criam vida própria. E o Direito acaba sendo uma mistura de ambas.

É um livro que deve ser estudado nas faculdades. Serafim, como uma espécie de autobiografia, mostra melhor que qualquer tratado jusfilosófico o sentido do direito. E também o não-sentido.

Passadas décadas, a dogmática jurídica — chame-se a isso de doutrina se se quiser — está repleta de conceitos-que-não-são, que servem para justificar a posteriori o que já foi escolhido. Algo como “decido e depois busco o fundamento”.

Um dos conceitos prenhes de vazio é o de “juiz boca da lei”. A pergunta de um milhão de cabeças de gado: Se houvesse, mesmo, juiz boca da lei, Serafim não teria tido melhor resultado? E o que dizer do standard “o livre convencimento veio para superar a prova tarifada”? Ora, é mesmo? Isso é mesmo assim?

O leitor descobrirá muita coisa sobre a doutrina. E sobre a jurisprudência. E como o Direito cria lendas urbanas como “juiz boca da lei”. Existe? Existiu algum dia? Leiam o livro. E descobrirão.

Daí a importância de um livro como o de Serafim. Por que será que esse caso específico, numa pequena comarca, no sul do Brasil, de tanto tempo atrás, tem tanto a nos ensinar?

Por que acredito em lobisomem” mostra a realidade como ela é. Serafim Machado faz melhor que os realistas e que os positivistas (que não deixam de ser positivistas): sua descrição é mais fiel e não se pretende neutra, porque não se furta a dizer que não pode ser assim.

“Não pode ser assim”. Esse é o ponto do belo livro de Serafim.

Boa leitura. E bons estudos.

Post scriptum: de lambuja o livro apresenta uma estória no entremeio, que se passa “alrededor” da fronteira do Rio Grande do Sul, que começa no capítulo 13, em que inicia assim “…Esta é uma estória, acontecida no tempo de dantes, num lugar tão longe…”. A estória essa, entremeada no livro, fala de agruras. Muitas agruras.

Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.

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